“Tem de se estar à altura das palavras que digo e que me dizem. E, sobretudo, tem de se fazer continuamente com que essas palavras destrocem e façam explodir as palavras preexistentes. Somente o combate das palavras ainda não ditas contra as palavras já ditas permite a ruptura do horizonte dado, permite que o sujeito se invente de outra maneira, que o eu seja outro.”[1]

Pensar e escrever sobre o cinema realizado por mulheres é criar um território para que mundos ainda não visíveis sejam narrados. Toda a minha vivência cineclubista me mostrou que o filme se faz no encontro onde afeta as vidas em uma pedagogia profana.

Mulheres cis ou trans, negras, indígenas ou brancas, e de diversas expressões afetivas lutaram e ainda lutam muito para que seu olhar sobre o mundo rompa as fronteiras marcadas em um território, desde sempre ocupado majoritariamente por um tipo de homem branco, cis, hétero, e habitante do lado norte do planeta.

Não fazemos filmes descoladas de quem somos nem de onde estamos, e o que somos vem sendo moldado por esse território audiovisual há mais de um século. Somos afetadas pelo que lemos, vimos e ouvimos, assim como afetamos a quem nos lê, vê e ouve.

Na minha infância, crescendo em plena ditadura em uma realidade de classe média suburbana brasileira, cresci sem ver nenhum filme realizado por mulheres. Sem exceção, todos carregavam a lógica masculina impregnada dos grandes estúdios estadunidenses e das TVs brasileiras. Hoje, as meninas começam a ver histórias narradas por outros olhares que não apenas os desses senhores.

Novas perspectivas de realizadoras mulheres diversas têm nos permitido perceber o quanto estivemos limitadas neste enquadramento por olhares que não os nossos. As mulheres que fazem cinema falam com outras vozes, olham com outros olhares, enquadram outros planos e narram outras vidas e mundos possíveis.

A partir da minha prática cineclubista junto às Feministas de Quinta, percebi que não somos todas iguais como temos sido narradas. Não somos esses retratos planos ao qual insistem em nos enquadrar. Mesmo entre mulheres não sofremos as mesmas dores nem vivemos as mesmas alegrias. Somos muito diferentes em nossas lutas. Ainda assim, nos encontramos em algum lugar dentro de uma estrutura que continua a tentar frear os movimentos dos nossos corpos, amordaçar nossas palavras e apagar nossas imagens.

Desde a primeira edição da Mostra Mulheres no Cinema do Festival de Cinema de Vitória em 2016, nossa curadoria sempre se pautou pela necessidade de um olhar coletivo e diverso. Já há alguns anos ela é realizada por mim em conjunto Hégli Lotério e Bárbara Cazé. Todos os anos buscamos, encantadas, descobrir qual é o olhar predominante da enxurrada de filmes inscritos. Cada leva de filmes traz questões características e desenha uma paisagem nova, conduzindo-nos a selecionar o que será exibido naquele ano. São os filmes que nos dizem quem são essas mulheres e que mundo elas estão inventando naquele recorte de tempo e de território.

Na 1ª edição da Mostra, a violência deu o tom e estava presente em muitos filmes como um grito de “basta” do olhar fetichizador masculino sobre a violência contra o corpo da mulher. O filme vencedor “Dentro de casa”, de Yasmin Nolasco, traz uma protagonista negra interpretada por Cinthia Caetano que sofre gaslighting do companheiro.

Com a 2ª edição, outros temas se inseriram no desenho da Mostra. Questões como identidade racial, memória e pertencimento tiveram relevo. O vencedor de 2017 foi o belíssimo “Revejo” de Láisa Freitas, onde a diretora investiga a sua própria experiência de negritude, dando origem a uma websérie com entrevistas de outras mulheres negras sobre o tema.

Em 2018, a diversidade se mostra nos filmes selecionados e nos três curtas premiados, focando questões tão múltiplas quanto suas narrativas. O melhor filme pelo Júri Técnico foi “Mc Jess” de Carla Villa-Lobos, sobre uma poeta negra e sapatão. Receberam menções honrosas os filmes “Em Busca de Lélia” de Beatriz Vieirah, contando sobre sua busca pela ancestralidade inspirada por Lélia Gonzales, e “Fofa” de Flora Pappalardo sobre ressignificação de corpos gordos.

2019 foi marcado pela diversidade de várias regiões do país. A curadoria buscou uma seleção em que os curtas-metragens olhassem para as mulheres em relação com as suas comunidades. O curta-metragem vencedor do prêmio do júri técnico “Deus te dê boa sorte” de Jaqueline Farias, traz um recorte sobre a vida das mulheres parteiras da comunidade indígena Pankaru. “Afeto” de Gabriela Gaia Meirelles e Tainá Medina se escora na linguagem experimental para olhar a cidade e sua arquitetura no embate com os corpos femininos.

Em 2020 com uma pandemia que atravessou nossos corpos e nos impôs o isolamento e o luto que ainda se perpetuam, a Mostra teve que ser remota e os filmes nos levaram a pensar que nossas lutas devem ser constantemente atualizadas. As questões apresentadas nos filmes mostram pautas tão diversas quanto são as perspectivas das mulheres que as narram. “Ângela” de Marília Nogueira traz a solidão das mulheres na terceira idade, mas também o alívio do encontro e da amizade entre mulheres. “Esmalte Vermelho Sangue” documentário de Gabriela Altaf, apropria-se do discurso publicitário kitsch para traçar um paralelo entre a violenta modelagem dos corpos para sua adequação aos padrões de beleza e as violências cotidianas dos relacionamentos abusivos. O documentário foi vencedor do prêmio de melhor filme pelo júri popular e também recebeu menção honrosa.

Em uma paráfrase à citação do início do texto, para o cinema em que acredito hoje, penso que as narrativas devem fazer continuamente com que suas imagens e sons destrocem e façam explodir as imagens e sons preexistentes. As histórias das e pelas mulheres reveladas nos filmes nas cinco edições da Mostra Mulheres no Cinema do Festival de Cinema de Vitória, a partir da nossa curadoria coletiva, revelam-se como armas potentes de uma pedagógica profana ao tornar possível novas escritas territoriais de nós, mulheres no mundo. Enquanto realizadora e educadora sou também aprendiz de novos olhares criadores de mundos possíveis. Mais erros do que acertos, mas sei e afirmo que é preciso manter olhos e ouvidos bem abertos e receptivos às narrativas dos cinemas explosivos de todas essas mulheres, desnaturalizando as violências e os abusos de um sistema que tem virado as costas para a vida das mulheres há tempo demais.

Queremos mais filmes feitos por mulheres, por mulheres negras, por mulheres indígenas, por mulheres com deficiência, por mulheres trans, por mulheres lésbicas, por todas as mulheres que se recusem a vestir a armadura do olhar que nos padroniza e tenta nos enquadrar em fôrmas rígidas de ser-estar no mundo. Outros corpos, outras dores, outras alegrias e outras formas de amar também são possíveis e reais e ainda sofrem opressões tão arcaicas num país que continua a exterminar as diferenças, de fome, desesperança, peste e bala.

Nós mulheres podemos e queremos mostrar novos olhares, e quem sabe, apontar novos riscos nos mapas a serem trilhados com bússolas inéditas que contém do ainda não vivido, ainda não dito, ainda não visto.

Nesta seleção especial da Mostra Mulheres no Cinema trazemos oito filmes vencedores das suas cinco edições: “Dentro de casa” de Yasmin Nolasco, “Revejo” de Láisa Freitas, “Mc Jess” de Carla Villa-Lobos, “Em busca de Lélia” de Beatriz Vieirah, “Fofa” de Flora Pappalardo, “Deus te dê boa sorte” de Jaqueline Farias, “Afeto” de Gabriela Gaia Meirelles e Tainá Medina e “Esmalte Vermelho Sangue” de Gabriela Altaf.

Que em 2021 a Mostra Mulheres no Cinema do Festival de Cinema de Vitória nos traga muito mais filmes de mulheres e garanta o lugar especial de visibilidade para as histórias que podem nos ajudar a continuar a adiar infinitamente o fim de mundo que agora morde os calcanhares de todos, todes e todas nós.

Saskia Sá é escritora, ilustradora, diretora e roteirista

[1] LARROSA, Jorge. Pedagogia Profana: danças, piruetas e mascaradas. 4.ed. Belo Horizonte, 2006.

Com realização da Galpão Produções Artísticas e Culturais e do Instituto Brasil de Cultura e Arte – IBCA, o projeto conta com recursos da Lei Aldir Blanc, via Edital de Seleção de Projetos e Concessão de Prêmio “Cultura Digital” – Apoio à Produção de Conteúdos Digitais no Estado do Espírito Santo, por intermédio da Secretaria de Estado da Cultura (Secult ES), direcionada pela Secretaria Especial da Cultura do Ministério do Turismo, Governo Federal.

FacebookTwitterWhatsAppCompartilhar