Reconhecido expoente da cena marginal do cinema brasileiro, Neville D’Almeida, homenageado desta noite, comenta na entrevista abaixo sobre seus 50 anos de carreira completados em 2018, o cenário de festivais de cinema e sua contribuição ao cinema pela transgressão e contracultura. Leia na íntegra abaixo:
Como recebeu a notícia de que seria homenageado?
Homenagear as pessoas que têm dedicado a sua vida inteira ao cinema é uma grande iniciativa. Vejo com muita alegria essa homenagem a Neville D’Almeida, que está completando 50 anos de cinema. Tenho que dar meus parabéns aos organizadores, principalmente à Lucia. Os festivais existem pra divulgar o cinema, para mostrar o cinema, para colocar o cinema no mundo. O Festival de Cinema de Vitória é um festival exemplar porque tem sido conduzido com grande amor, sensibilidade e principalmente capacidade de não ficar envolvido com pequenas coisas. É um festival que busca homenagear o cinema.
Parte da homenagem é a exibição do documentário sobre você, dirigido pelo Mario Abbade.
Estava na hora de aparecer um diretor talentoso, um verdadeiro diretor de cinema para fazer um documentário sobre o trabalho de Neville D’Almeida. Esse diretor apareceu, é o Mario Abbade. Acredito que o filme tem uma relação espetacular com o público e corresponde a todas as expectativas que eu tinha.
Que tipo de expectativas?
As melhores. O que a gente espera é que as melhores cenas, as coisa mais importantes, que muitas vezes são omitidas, apareçam. O cinema é alimentado por talento. Mas o cinema também vive de mentiras. Pessoas usam o cinema pra promover falsos talentos, ideias de cabresto, interesses pessoais. É muito importante que um diretor sério como o Mario Abbade faça um filme de verdade. Quando acabar o filme, você vai ver o entusiasmo das pessoas. Tenho uma grande confiança de que hoje a sessão de hoje à noite será uma sessão histórica.
Por ser um artista transgressor, muito identificado com a contracultura, o rótulo de “maldito” foi muito usado para descrever seu trabalho.
É natural no cinema que os seus adversários, que as pessoas que não têm tanto talento quanto você, quererem denegrir a imagem dos verdadeiros talentos. Isso tem acontecido comigo a vida inteira. Agradeço a Deus por não agradar essas pessoas. O cinema que a gente faz é um cinema de grande força dramática. Um filme de Neville D’Almeida pode passar na Rússia, no Afeganistão, em Hong Kong. Ele sempre cria uma relação com o espectador. Essas pessoas ficam querendo normatizar o cinema, então criam rótulos para tentar diminuir o que tem importância. É uma tentativa de conter a força do talento. A força do talento é a liberdade. O que acontece com o cinema do Neville é que ele tem um grau de liberdade muito grande. Num país que já teve ditadura militar, que ainda tem uma série de posições retrógradas, como o nosso, um cineasta verdadeiro pode ter muitos problemas.
E a onda conservadora parece estar se fortalecendo.
A onda de conservadorismo existe pela frustração das pessoas de ser enganadas o tempo todo. As pessoas às vezes podem acreditar que o conservadorismo pode ser uma solução. Mas pode ser uma prisão. O que temos para oferecer é um pensamento livre, uma arte livre que possa entender o nosso tempo. A resposta não é o conservadorismo. A resposta é o pensamento livre, que leva a um grau cultural mais elevado.
Seus filmes seguidamente refletiram essa tentativa de se libertar das normatizações. O “Matou a família e foi ao cinema” se comunica muito com o que a gente está vivendo. Na cena final, você segura um jornal com uma manchete…
“O povo está fodido.”
Assistir a esse tipo de cena hoje soa mais atual ainda.
É verdade. Isso é uma coisa maravilhosa e agradeço a Deus por ter me dado a oportunidade de fazer esses filmes que não ficam presos ao passado. São antenas do futuro. Existe um cinema político que não serve mais para nada, está ultrapassado. Existe um cinema de costumes que também fica totalmente ultrapassado. A grande força do cinema são os filmes que podem ser vistos muito tempo depois e aquela mensagem continua. O que você falou é muito emocionante. Você vê que “Matou a família e foi ao cinema” tem quase trinta anos. Estamos aqui hoje e o povo está fodido. Está mais hoje do que está naquela época. Hoje com 14 milhões de desempregados, 45 milhões de sub-empregados, pessoas devendo, oprimidas pela vida. O cinema tem uma força muito grande de libertação pessoal, existencial, política, cultural e espiritual.
Ontem a Maria Gladys, dirigida por você em alguns filmes, recebeu uma homenagem surpresa do Festival. Você criou vários papéis marcantes para atrizes brasileiras, como a Sônia Braga em “A Dama do Lotação” (1978). Existe alguma atriz que você ainda tenha vontade de dirigir?
Tem uma atriz que acho excelente: Juliana Paes. Tenho muita vontade de fazer alguma coisa com ela. Não a conheço, nem nunca vi, mas gosto muito. Ela tem um potencial cinematográfico enorme e ainda não foi usado devidamente. Ela continua sendo uma grande atriz latino-americana que pode encarnar todo o talento que se espera da dramaturgia latino-americana. Está entre as maiores atrizes do mundo. É um erro achar que os grandes atores e atrizes não estão aqui. É um absurdo ficar cultuando canastrões americanos e canastronas americanas, de pouco talento. Estão sempre fazendo a mesma coisa. Como a máquina da propaganda e da produção desses filmes age de forma muito forte, fica parecendo que esas pessoas têm talento. Aqui no Brasil temos homens e mulheres de grande talento. Lima Duarte, Antônio Fagundes, Joel Barcellos, Fernanda Montenegro, Laura Cardoso, Maria Gladys, Natália Timberg. Não sou desse tipo de direitor que quer o que não tem aqui. Tudo que eu quero está aqui.
Você já está filmando “A Dama da Internet”?
Está pronto para filmar. Estamos buscando o elenco. Essa escolha é muito difícil, sou muito envolvido dramaticamente. Sei qual a importância de uma boa escolha.
O filme retoma “A Dama do Lotação”?
Não. “A Dama do Lotação” é uma história da mulher no século XX, no meio dos anos 1970, o princípio da libertação da mulher. O mais importante é as mulheres colocarem os homens nos seus devidos lugares, geralmente na lata de lixo. No “A Dama do Lotação”, ela se entrega a todos para continuar amando seu marido. Agora, as mulheres estão fazendo com os homens os que eles têm feito com as mulheres nos últimos dois mil anos: todo tipo de submissão. São dois mil anos de inferiorização do sexo feminino. Isso está mudando. “A Dama da Internet” mostra o desenvolvimento existencial da mulher.
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Uma realização da Galpão Produções e do Instituto Brasil de Cultura e Arte (IBCA), o 25º Festival de Cinema de Vitória conta com o patrocínio do Ministério da Cultura, através da Lei de Incentivo à Cultura, da Petrobras, do Banco Nacional do Desenvolvimento (BNDES), do Banco Regional de Desenvolvimento (BRDE), do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), da Ancine, e do Governo Federal, com apoio da Rede Gazeta, da Prefeitura Municipal de Vitória, e da Secretaria de Estado da Cultura do Espírito Santo. O Festival conta também com Apoio Institucional do Centro Técnico do Audiovisual (CTAv), do Canal Brasil, da Arcelor Mittal, da Link Digital, da Mistika, da Cia Rio, da UVV, da Marlim Azul Turismo e da Carla Buaiz Joias.
NEVILLE dispensa dispensa adjetivos é substantivo no fazer dramático;
ABBADE segue fluxo tras-plasmando o próprio em concentrado conhecimento;
GLADYS é substância