Referência para o cinema nacional de animação, o diretor Otto Guerra exibiu seu novo filme “A Cidade dos Piratas” para o 25º Festival de Cinema de Vitória na sexta-feira, 8. Com sessão gratuita, o filme integra a programação da 8ª Mostra Competitiva Nacional.
Inspirado na tira de quadrinhos “Os Piratas do Tietê”, da cartunista Laerte, o filme mistura a trajetória da artista para se assumir trans e uma crise pessoal do próprio diretor, curado recentemente de um câncer. Na obra, um cineasta passa a desconfiar dos personagens de seu filme inacabado. Para resolver o imbróglio – e finalizar o longa -, o diretor decide contar sua própria história, perturbando os limites entre ficção e vida real.
Confira abaixo uma entrevista com o diretor:
O filme levou 20 anos para ficar pronto. Houve muitas mudanças ao longo do processo?
Esse projeto sobre os quatro amigos – Angeli, Glauco, Laerte e Adão – é em cima da revista “Chiclete com Banana”, que na década de 1980 os caras vendiam 150 mil revistas por mês. Foi um grande acontecimento na época. Desde 1993, a gente planeja fazer uma trilogia dos filmes deles. Fez “Wood & Stock: Sexo, Orégano e Rock’n’roll” e “Rock & Hudson”. Glauco foi assassinado nesse meio tempo, e aí fica complicada a questão dos direitos autorais. E fizemos a Laerte agora. Só que passou muito tempo. De fato,a vida real superou a ficção. O Laerte virou “a” Laerte, ela é transgênero agora. E o trabalho virou de cabeça pra baixo. Ela passou a achar os piratas machistas. Não gosta mais dos personagens. Para ela, eles são “múmias”. Eu já estava com o roteiro pronto, depois de muitas versões. Aí resolvi trazer o trabalho novo da Laerte. Ela evoluiu muito. A gente fez uma nova versão do roteiro, que agrega os trabalhos novos e a estrutura antiga dos piratas. A gente manteve os personagens, os piratas, só que eles são invadidos pelo tempo atual: os acontecimentos da Laerte virar transgênero. Ela aborda questões como o assassinato de transexuais. O Brasil é o país que mais mata transexuais no mundo. O resultado dessas mudanças foi bom, o filme ficaria um pouco datado. Seria uma sequência de piadas engraçadas, mas não teria um conteúdo mais interessante, que faz diferença, ainda mais nessa crise política. Por acaso o personagem principal do filme é um político homofóbico, que é um gay enrustido. Ele tem paranoia com gays e fica acumulando ódio em botijões. Isso é um tipo de comportamento padrão do macho-alfa branco. O filme aborda essa coisa da psicose, da intolerância.
Qual a participação da Laerte no filme? Roteiro?
O roteiro de longa-metragem é um enigma. A Laerte trabalha com quadrinhos. Claro que a gente baseou tudo no universo dela – menos eu, que entrei na história como personagem. Mas a participação dela no início foi no story-board, no filme que a gente acabou não fazendo.
E você acaba entrando como personagem no filme.
O fato de ter tido no meio do processo ter essa posição contrária do autor, e o fato de ela virar transgênero, eu trouxe isso para dentro do filme. A gente fez o capitão do navio dos piratas, o personagem principal, ser uma espécie de alter-ego meu. E o fato de você ter uma empresa… Você tem que decidir quem é melhor ou pior, você acaba sendo mesmo um pirata. É uma decisão de cima pra baixo – cortar a cabeça do cara, botar o cara em cima da prancha. Ou acontece um motim, né? O filme tem um motim no navio. E na produtora tem um motim contra mim. A gente brincou com isso. O fato de a Laerte ter esse mudança radical em todos os aspectos poderia ter naufragado o filme, mas a gente usou isso a nosso favor.
O que te fez adotar essa postura mais atuante?
Entre as coisas que aconteceram no plano do real, eu tive um câncer. Achei que eu fosse morrer. Era bem grave, deu metástase e tal. Não se deve ler no Google sobre doenças… Chutei o balde. “Vou morrer, então vou fazer o que quero fazer.” E é o filme que eu mais gosto. Só que daí eu não morri, e estou tendo que mostrar o filme vivo (risos).
Alguns filmes do festival têm refletido o momento que o país vive…
Interessante que o primeiro filme (“Pastor Cláudio”, de Beth Formaggini) é sobre tortura, o segundo (“A Mata Negra”, de Rodrigo Aragão) tem muita violência… Estamos num momento bem grave. Estou muito apavorado com a possibilidade de o golpe se desdobrar. Eles não querem entregar a chave do cofre. Isso é muito perigoso, porque eles podem assumir a lei. E a lei é muito manobrável.
Neste filme você se deu mais liberdade?
Ele é completamente anárquico. Os trabalhos da Laerte, do Angeli e do Glauco são uma espécie de metralhadora giratória. Até neles mesmos. Não tem herói, não se salva ninguém. As pessoas agem conforme as circunstâncias. Hoje você vai no cinema e o filme é só entretenimento. Ele deveria fazer as pessoas pensarem, mas é mais fácil entregar tudo digerido. Não há um interesse em pensar, até porque se você pensar, você sofre, né?
Existe alguma característica que marca o cinema de animação no Brasil?
Sim. Eu não pensava que veria esse momento que a animação brasileira está vivendo. A gente está com uns 25 longas em produção ou distribuição, simultaneamente. O animador tem uma coisa de paixão que te deixa meio nerd. De forma geral, o cinema de animação brasileiro fica tentando copiar o cinema americano. Mas pra chegar naquele nível você precisa de 100 anos de cinema. A gente teria que construir um cinema de animação brasileiro, usar direção de arte brasileira. A cultura brasileira é muito rica tanto em conteúdo quanto em estética. Deveria pegar essa estética e desaguar no cinema de animação. Por que o Japão é um grande produtor de animação no mundo? Porque eles têm uma identidade própria. Estamos jogando fora a oportunidade de ter uma identidade própria.
25º FESTIVAL DE CINEMA DE VITÓRIA
Uma realização da Galpão Produções e do Instituto Brasil de Cultura e Arte (IBCA), o 25º Festival de Cinema de Vitória conta com o patrocínio do Ministério da Cultura, através da Lei de Incentivo à Cultura, da Petrobras, do Banco Nacional do Desenvolvimento (BNDES), do Banco Regional de Desenvolvimento (BRDE), do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), da Ancine, e do Governo Federal, com apoio da Rede Gazeta, da Prefeitura Municipal de Vitória, e da Secretaria de Estado da Cultura do Espírito Santo. O Festival conta também com Apoio Institucional do Centro Técnico do Audiovisual (CTAv), do Canal Brasil, da Arcelor Mittal, da Link Digital, da Mistika, da Cia Rio, da UVV, da Marlim Azul Turismo e da Carla Buaiz Joias. O lounge do Festival tem parceria com a Ecobier e o restaurante Gosto Capixaba e é co-realizado pela Galpão Produções e pela Molaa.
Quando: até sábado, 8 de setembro.
Onde: Teatro Carlos Gomes, Centro de Vitória.
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